
Andréia
Leonardo Brandão
Maria Francisca Pagnozzi
Taísa Rodrigues
Lázara, faça um resumo de sua vida até o acidente.
Eu nasci em Inocência e depois fui para Três Lagoas. Em 1965 eu mudei para Campo Grande. Sempre tive comigo uma coisa muito especial. Desde menina fui batalhadora, sempre procurei trabalhar para que pudesse conseguir tudo aquilo que eu queria. Era uma menina muito ambiciosa. Com 13 anos comecei a trabalhar e estudar a noite, na luta de toda mocinha, querendo as coisas, o carro, o tênis da moda. Isso não foi diferente comigo.
Então eu conheci meu ex-marido. Nós fomos morar em Aquidauana. Nasce a minha filha e lá comecei a trabalhar no Estado sendo transferida para Três Lagoas. Na época de divisão do Estado, eu fui transferida para Campo Grande, foi onde aconteceu o acidente. Eu estava mudando de Três Lagoas, onde eu morava. Era um apartamento que ficava rente aos fios de alta tensão, e pedi que o ajudante fosse tirar de cima do apartamento a antena de televisão. Ele passou para mim eu não agüentei o peso. Ao encostar a antena nos fios, recebi uma descarga elétrica de 13 mil watts.
A senhora foi internada em Campo Grande?
Fui atendida em Três Lagoas, depois vim para Campo Grande, onde não foi possível recuperar as minhas mãos e tiveram que ser amputadas.
Nessa época eu tinha uma filha de quatro anos e era funcionária pública, naquela de todo ser humano achar que você nunca tem tempo para nada.
Então, chegando aqui em Campo Grande depois do acidente, para mim foram muito difíceis os primeiros meses, só no hospital eu fiquei dois meses. A recuperação foi muito lenta. E como toda recuperação a gente tem uma sede muito grande que passe logo, não temos paciência, mas o tempo é o senhor.
Você chegou a ter depressão?
Sim, eu tive de tudo um pouco, sabe? Ansiedade muito grande em pensar, o que eu vou fazer agora? Com 26 anos, uma criança de quatro anos. Como eu trabalhava na Secretaria de Fazenda, agilizei o meu processo para aposentar, mas fora essa aposentadoria, eu procurava alguma coisa para me sentir útil. Então uma amiga me convidou para ir pintar. Primeiro eu disse a ela, “mas como? Nunca pintei! E agora sem as mãos.” Aí ela falou pra mim: “Vamos tentar Lázara, quem sabe?” E nessa tentativa, no primeiro dia de aula eu pintei um quadro, fiquei muito alegre, muito maravilhada com aquilo. Pensava: “Nossa eu sou capaz”. Mostrei esse primeiro quadro para o meu pai, ele era meu fã, e disse: “Olha minha filha, que maravilha. Você sem as duas mãozinhas conseguiu pintar o quadro, eu tenho as duas e não sou capaz”. Então eu comecei a pintar e a primeira exposição minha foi um sucesso. Pintando, eu conheci uma pessoa, um vizinho, que me disse: “Lázara você podia contar a sua história, porque vai ajudar muita gente”. E eu comecei a escrever a minha história. Em 1985, eu fiz a minha primeira exposição. Em 1988 eu lancei o meu livro “Vitoriosa Espinhos e Perfumes”. Então foi muito importante para mim.
A senhora falou em Deus, se considera uma pessoa religiosa?
Sou. Eu acredito muito nele (Deus), eu vivo o dia porque sei que Ele está comigo, e me dá uma mão muito grande. Eu faço sutra para os meus antepassados e rezo para eles. Isso é outra energia que recebo, que é fundamental pra eu viver.
A vida é difícil, mas é difícil para aquela pessoa que tem preguiça de ir à luta, porque para os fortes, para aqueles que querem lutar, não.
Eu estou na faixa dos 50... Já não sei se são seis ou sete estou na casa dos “entas”. Recebi uma homenagem muito linda na minha cidade, que tem um Centro Cultural com o meu nome. Isso foi gratificante: quando você vê seu nome escrito na parede, é delirante. Eu não vou dizer que está bom, que já consegui tudo, não, eu ainda quero muita coisa. Porque eu acho que tenho muita coisa para fazer. Sou voluntária de várias entidades, da AACC, do Asilo São João Bosco, de creches. Tenho muito a fazer, porque eu recebi muito de Deus, e eu preciso fazer pelos meus irmãozinhos que precisam. Ele me deixou aqui, me deu uma segunda chance de vida porque ele queria que eu mostrasse para as pessoas que nós somos capazes de tudo, depende só de querer.
Preconceito. A senhora sentiu na pele o preconceito das pessoas, tanto daquelas com quem convivia, quanto as que veio a conhecer depois do acidente?
Me relacionei com poucas pessoas depois do acidente, porque morava em Três Lagoas. Aqui eu conhecia pouca gente. Mas o preconceito existiu e eu senti na pele porque você quando não é “normal” é discriminada. Se você chega no meio, as pessoas te olham, saem de perto, comentam. Então eu sou alvo de muita crítica de crianças e de adultos.
Como foi o início, após o acidente?
Foi difícil porque eu não estava preparada, mas hoje eu tiro de letra. Há as pessoas que me amam e me aceitam, mas existem aquelas que ficam com essa besteira tão grande, que é o preconceito. Como eu digo: eu estou, mas eu não sou deficiente físico. Porque tem pessoas que tem tudo, mãos e braços, e são deficientes da cabeça, porque elas não fazem nada para si, muito menos para o seu semelhante. Essa é a maior deficiência, porque vivem criticando e reclamando. Naquela época eu tinha dois caminhos: um era seguir procurando alguma coisa, o outro era de parar e esperar a morte chegar e reclamar da vida. Nesse caminho eu não ia arrumar muitos amigos, mas, esse outro caminho me levou para uma situação maravilhosa.
Politicamente, a senhora acha que no Brasil existe uma tendência de tratar o deficiente físico como incapaz?
Isso está acabando um pouco, hoje acho tão bonitinho, você vai nessas repartições e tem muita gente (deficiente) trabalhando. Está melhorando muito, já melhorou. Porque antes, há 30 anos, quando aconteceu o acidente comigo, todo mundo falava: “Coitada, você não vai poder fazer mais nada”. Teve um que me disse: “Queria tanto ser igual a você e não poder trabalhar”.
Então melhorou muito, e existe a abertura para o deficiente físico. Hoje ele tem lugar reservado para trabalho. Isso é fundamental.
Qual a maior dificuldade que o deficiente físico encontra hoje?
Olha, o deficiente físico sem dinheiro, esse vai achar dificuldade em tudo. Mas, mesmo assim, para aquele que estuda, as portas automaticamente abrirão. Eu cheguei a um ponto em que as pessoas me vêem dentro do meu carro, e dizem: “Nossa, como você é maravilhosa”. Tem uma divisão, que eu sinto, todo mundo me acha o máximo e linda dentro do carro, mas e quando estou a pé?
Você trabalha com palestras motivacionais. Existem programas do governo que dão assistência à auto-estima de quem sofreu um processo como o seu?
Nunca encontrei ninguém que viesse me falar de algo assim se eu não fosse procurar. Eu procuro justamente isso, essas entidades que cuidam dos deficientes, para fazer palestras. Como o vídeo [vídeo que narra a história de vida de Lazara], que foi feito para isso, pra ajudar as pessoas. Para levar nas palestras, mostrar. Então eu preciso fazer isso, porque eu já estou “curada”, mas têm muitos que não estão.
Qual é o principal enfoque em suas palestras?
A auto-estima, para aquelas pessoas que moram em bairros humildes, recebem Bolsa Família, bolsa de todo tipo do governo e dizem: “Tá bom, pra que mais?” Vamos fazer alguma coisa, tem tanto trabalho a ser feito. Eu nunca imaginei que eu pudesse pintar, porque as pessoas acham assim, isso aqui é muito difícil, não sei. Mas eu tentei, e quero passar para as pessoas, que quando você tiver vontade de alguma coisa, vá, procure uma pessoa para te auxiliar que saiba mais que você. Porque nas artes plásticas foi onde eu me realizei como pessoa. E também para mostrar à sociedade, que nós mesmo assim, sem as duas mãos, podemos fazer muito, por nós e para os outros.
Qual é o papel da arte para a reabilitação social? Como a arte transforma a auto-estima?
Para mim no começo, foi valiosa na questão financeira. “Entrou um trocado, que maravilha.” Eu acho que isso motiva. Quem não gosta de ganhar dinheiro? Principalmente essas pessoas da periferia, arrumar algo pra ganhar um dinheirinho. Eu me senti mais fortalecida. Eu estou sem as mãos, mas eu tenho habilidade pra fazer um monte de coisas. Tanto é que hoje eu moro sozinha, o dia a dia é normal até demais (risadas). Eu nunca havia pintado, mas, quando eu cheguei, a professora assustou. Ela não se importou de como eu ia pegar o pincel, de tão assustada que ficou.
A primeira professora foi...?
Maria Teseli. Depois fui fazer aula com a Leonor Lage. Fiquei um tempo com ela, depois me apartei, me senti firme, tanto é que esses quadros aí (ela aponta os quadros na parede) são todos criações minhas.
A senhora tem alguma técnica pra fazer as obras? Ou é mais intuitivo?
Eu desenho e peço pra alguém recortar, depois passo uma tinta branca. Mas é tudo criação minha, me deu vontade de fazer uma borboleta, vou lá e risco. A técnica é essa, tinta óleo, inspiração e minha vontade. A pintura na minha vida me fez sentir gente. Pensei: “Não estou acabada eu tenho um caminho a seguir”.
Qual foi a emoção da primeira exposição?
Indescritível, foi o resumo de tudo. Eu fui pintando e decorei minha casa, morava em uma casa enorme. Foi quando a professora me pediu pra começar a pintar para minha primeira exposição. E eu fiz 26 quadros. Fiz a exposição no dia do meu aniversário, 26 de setembro.
Não, ninguém sabia de nada. Escrevi convite para todo mundo. “No meu aniversário, vão ter uma surpresa”. Todo mundo ficou admirado, vendi tudo, e com esse dinheiro construí uma casa para minha mãe. Eu tinha dinheiro para fazer uma viagem longa, ou comprar um carro zero. Aí pensei: minha mãe não tem casa própria, mora de aluguel, e eu construí uma casa para ela. Nossa, a realização não foi do meu pai e da minha mãe, foi minha. Saber que eu fiz aquilo com o meu trabalho. Meu pai ficou orgulhoso, contava para todo mundo.
Fiz uma exposição, no início de maio lá no Estoril, fui convidada especial dos 80 anos do clube. Eu olhava, quantas pessoas, todo mundo me conhecia, tinha umas 500 pessoas lá. Eu já fiz um pouquinho da minha história, são 24 anos de pintura. E nessa minha caminhada eu tenho seguidores, uns que pintam porque a “Lázara pintou, porque não eu?”. Outros: “Lázara dirige porque eu não vou dirigir?”
Para finalizar, qual o maior sonho de Lazara Lessonier?
Eu quero ser muito feliz no amor e dentro do amor ajudar muitas pessoas, e quero pintar muito ainda.
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